No Irã, mulher não pode andar de bicicleta. Ninguém soube me explicar o porquê. Talvez seja pela posição do corpo na hora de pedalar, sensual demais para uma sociedade dominada pela imposição de padrões morais ainda tão rígidos. Talvez seja porque a bicicleta é um veículo diretamente associado à liberdade, autonomia e independência. E no Irã, as restrições de gênero são comuns. As mulheres são obrigadas a cobrir o cabelo, todas elas. As mulheres não podem nem se hospedar em um hotel sem a autorização dos pais ou dos maridos.
Mas que ninguém se engane achando que é uma sociedade de mulheres submissas ou frágeis. Conversei com garotas e senhoras inteligentíssimas, cientes de seus direitos e ávidas por mudanças. As que conheci não só participavam ativamente do núcleo familiar, muitas vezes como protagonistas nas casas, como também atuavam em esferas públicas com destaque. Foi uma médica aposentada quem me deu o melhor retrato da situação dos hospitais do país. Foi uma psicóloga que me mostrou como elas atiram o cigarro longe discretamente ao ver a aproximação dos Basijs, a temida polícia de costumes – fumar em público não é uma atividade bem vista para mulheres. Foi uma universitária quem contou em detalhes a silenciosa revolução sexual em curso entre as mais jovens. Que ninguém se engane, o Irã está mudando.
A situação é complexa e qualquer simplificação é perigosa em análises sobre o país. O governo atual, marcado pela restrição de liberdades individuais, é resultado mais das pressões externas do que de um fundamentalismo generalizado. Os mais radicais, que defendem medidas e leis extremamente conservadoras, são claramente minoria. O problema é que, com o país cercado por tropas estrangeiras e alvo da cobiça das nações mais ricas e poderosas do planeta, a solução radical passa a ser vista por muitos como o melhor caminho para manter a independência.
O Irã é rico em reservas naturais. Não só petróleo, mas também do tipo de gás que será necessário para manter a Europa aquecida em invernos cada vez mais extremos em função das mudanças climáticas. Fica pertinho da Rússia, que tem interesse em controlar este mercado. E é cercado pelos países de mais alta taxa de crescimento populacional do planeta: China, Índia e Paquistão, três gigantes que também precisarão de cada vez mais recursos naturais. E, para completar, faz fronteira com Iraque e Afeganistão, vizinhos não por acaso invadidos pelos Estados Unidos. É em meio a essa pressão externa generalizada de outros fundamentalistas que o fundamentalismo floresce e dá frutos no Irã.
Fundamentalismos
Fundamentalismo não é exclusividade ou sinônimo de islamismo. O teólogo Leonardo Boff, em seu livro Fundamentalismo, discute a questão em profundidade, levantando questionamentos e dados sobre práticas fundamentalistas católicas, como a proibição do uso de preservativos – orientação que teve papel decisivo na propagação da AIDS na África. Proibir o uso de um pano sobre a cabeça para quem acredita que isso é sagrado é tão violento quanto tornar obrigatória sua utilização. No Irã, quando tentaram proibir o véu, algumas mulheres passaram anos trancadas em casa, simplesmente incapazes de cumprir a determinação de exibir os cabelos.
O diferente precisa ser respeitado. Muita gente boa tem escrito sobre a importância da convivência entre diferentes religiões e da tolerância. Visões sobre a relação entre espiritualidade e humanismo independem da fé. Aliás, talvez tolerância nem seja a melhor palavra, como ensina o bispo católico Dom Pedro Luiz Casaldáliga, que em 1977 escreveu o livro “Creio na Justiça e na Esperança”, uma aula de convivência e utopia:
Por pura necessidade de sobrevivência, o choque de civilizações terá de ser substituído por diálogo. Há no mundo um bilhão
de muçulmanos, de várias culturas e povos diferentes. Uma sexta parte da humanidade é muçulmana. E não adianta ser tolerante. Tolerância é o que havia na guerra fria, algo muito raquítico. José Saramago inventou a palavra igualância. Podemos aprender muito com os muçulmanos, um certo sentido de contemplação, de adoração a Deus. E acho sarcástico que se queira apresentar aquele como o maior terrorismo da história. É uma blasfêmia. Esquecem-se o holocausto, Hiroshima, todas as guerras e invasões que tiveram o patrocínio dos Estados Unidos. E sobretudo a conquista da América e o que se fez com os índios, inclusive naquele país.
Dom Pedro Luiz Casaldáliga, em entrevista à revista IstoÉ
O escritor paquistanês Tariq Ali, que é ateu, é outro que tem insistido na importância da convivência e diálogo entre pessoas de opiniões e fés diferentes. Seus romances são deliciosos – “À sombra das romanzeiras” e “O livro de Saladino” são obras em que referências históricas e ficção são misturadas com talento. O islamismo está longe de ser sinônimo de fundamentalismo. Aliás, como aponta o professor de filosofia Mario Miranda Filho, “pensar, pesquisar, falar, trocar, discutir, desafiar e repensar” são parte de uma cultura de tolerância e tradição de livre pensamento originalmente conhecida como ‘Ijtihad’. Ela surgiu e se desenvolveu no Islã entre 750 e 1250.
O Outras Vias passa longe da campanha generalizada de islamofobia que tem como objetivo principal caracterizar o Irã como um país do “Eixo do Mal” e os imigrantes árabes, turcos e iranianos como ignorantes fanáticos indesejáveis – imaginário que serve de pretexto para ações violentas como intervenções militares e deportações. É fácil colar rótulos e caricaturizar com moldes toscos realidades complexas – vide a tentativa de associar a tragédia que aconteceu no Rio de Janeiro com fanatismo religioso (leia ótimos textos a respeito no IG e no G1).
Mulheres
Isso posto, fica mais fácil falar sobre o absurdo de se proibir mulheres de pedalar. Oficializar a lógica machista no trânsito, com agressividade, força e potência como prioridades no lugar da gentileza, compartilhamento e suavidade só tornam as ruas mais duras e tristes. Não por acaso, a circulação nas principais cidades iranianas é tensa. E feia.
Sim, feia; porque beleza é instrumento de mudança, principalmente no embate contra a lógica do medo e das restrições. A imagem de mulheres independentes e livres pedalando, se divertindo no caminho para o trabalho, é por demais perturbadora para que qualquer motorista preso no trânsito não pense, considere opções, se questione. O sucesso que as Pedalinas, coletivo feminino de ciclistas, têm obtido em São Paulo e o nascimento de novos grupos em outras cidades, como as Cíclicas em Porto Alegre, só prova o pontencial de se buscar alternativas com sensibilidade e beleza.
Devemos seguir o quanto antes a sabedoria feminina… Já li e ouvi muito sobre isso. Talvez o atraso no Irã esteja mais forte por conta disso…
Recomendo o texto no World Streets que brilhantemente define:
1. Women as our best metric for sustainable transport and sustainable lives
Decerto os “homens” de lá acham que as mulheres podem vir a saber que podem ter orgasmos quando o celim da bike trepida… Então vão se sentir substituíveis… Kkkkk!
Sem brincadeira: soube de uma mulher que conheceu pela prima vez o orgasmo ao andar de bike em paralelepípedos…
Daniel,
que maravilha de texto você escreveu. Nossa, fiquei emocionada com a forma lúcida e bela com que abordou o tema. Meus parabéns!!! MUITO bom, MUITO lindo, MUITO humano, MUITO contundente. Acho ótimo saber que existem jornalistas com uma percepção aguçada, inteligente e profunda, que não lê pelas bordas, que não enxerga pela superfície, que se coloca no lugar do outro, que vai além do seu eixo. Vou divulgar este também, tá? Faço questão. Beijo
(…) que não lêem pelas bordas, que não enxergam pela superfície, que se colocam no lugar do outro, que vão além do seu próprio eixo, eu quis dizer.
Daniel, excelente texto, parabéns! Raro ver algo com tão fundamento, tão pertinente, sem ser ‘fundamentalista’ e bem escrito. Muito bom!