Rota Márcia Prado e a construção de caminhos

Cachoeira no meio do caminho

São Paulo é uma cidade rachada. O centro rico e bem dotado de infraestrutura e transporte público é todo cercado por uma periferia pobre e isolada. A Prefeitura reforça tal divisão há anos. Os bairros ditos “nobres” são os que mais recebem recursos públicos (era assim em 2007 e continua assim em 2010). O equilíbrio é frágil e instável. Para os habitantes das áreas mais abastadas, atravessar as zonas pobres depende da manutenção de avenidas e estradas bem policiadas, muitas cercadas com grades e muros. São rasgos que dividem comunidades, cercam e agravam a divisão e o isolamento.

É neste contexto que surgiu a ideia de se criar uma rota de cicloturismo rumo ao litoral de São Paulo. Em vez de cortar bairros residenciais com pistas de alta velocidade para veículos cada vez maiores, mais rápidos, mais pesados e mais blindados, a proposta desde o início foi construir um caminho integrando e aproximando áreas separadas. Em vez de queimar petróleo em uma das pouquíssimas áreas remanescentes de mata atlântica do Estado e do Brasil, veio a proposta de se utilizar bicicletas para aproximar pessoas e bairros. Assim surgiu a Rota Márcia Prado.

O nome é uma homenagem à cicloativista que morreu atropelada por um ônibus na Avenida Paulista. Ela esteve entre os que tentaram descer para o mar pedalando em 2008, na Bicicleta Interplanetária. Na ocasião, a Polícia Rodoviária impediu que os ciclistas prosseguissem pela Imigrantes.

Leia a história da Rota Márcia Prado e veja a página do Instituto CicloBR.

Rota Márcia Prado
No ano seguinte, em 2009, o Instituto CicloBR assumiu a liderança nas negociações com o poder público para conseguir abrir o caminho. As autoridades abriram uma exceção e, a contragosto, a Ecovias, concessionária do Sistema Anchieta-Imigrantes, permitiu que cerca de 900 ciclistas descessem para a praia. Foi lindo.

Esperando a travessia da balsa

Consciente do potencial de integrar a zona sul de São Paulo em uma rota de cicloturismo, o vereador Chico Macena (PT) abraçou a ideia e criou um projeto de lei para oficializar a Rota Márcio Prado. O texto virou decreto e foi publicado em 12 de junho de 2010.

Abrir o caminho rumo ao mar tem potencial. Tornar a periferia da Zona Sul da cidade uma região turística, onde cabem pousadas, bicicletarias, lanchonetes e agências, tem tudo para dar certo. É, talvez, o único caminho para desenvolver e ligar lugares lindos como a Ilha do Bororé sem substituir o mato por asfalto, fumaça e favelas.

Ainda assim, a abertura da rota de maneira permanente não foi oficializada. A edição deste ano foi mais um passo nesta direção, obtido mais uma vez graças ao trabalho voluntário do pessoal do Instituto CicloBR.

Edição 2010
Estive na Interplanetária em 2008 (assim como os demais, sem conseguir chegar ao litoral), e na Márcia Prado 2009 e 2010. Descobrir que é possível sair de casa na cidade cinza e chegar até a praia usando só a força das próprias pernas é algo transformador, perturbador até. Não sou um atleta, não me considero um atleta. Uso a bicicleta para ir e vir do trabalho duas ou três vezes por semana. Nos demais dias, vou de ônibus para poder ler um pouco. A vida é simples.

Bolsa no bagageiro, garrafinhas d´água, chinelo e biscoitos. Menos é mais.

Não é preciso muito para ir até Santos. Este ano, com uma bolsa pequena no bagageiro, um chinelo encaixado com cuidado, algumas frutas e água, fiz a viagem bem mais confortável. No trajeto tem lanchonetes e padarias. No final, tem a praia, com barraquinhas em que é possível pegar cadeiras emprestadas, sentar e, quiçá, até tomar uma cerveja.

O trajeto
Eu e mais seis amigos saímos por volta das 6h30 da Estação Cidade Universitária. Enquanto boa parte dos ciclistas começou a pedalar na ciclovia do Rio Pinheiros, decidimos pegar o trem – parabéns para o pessoal da CPTM que, neste ano, orientou o acesso em vagões diferentes em cada estação e, assim, evitou que ficassem bicicletas demais acumuladas nos últimos. Aliás, se a Ecovias tem dificultado a vida dos ciclistas, a CPTM tem feito um trabalho importante de integração com potencial de agregar e unir áreas periféricas da cidade.

Descemos no Grajaú e saímos pedalando pelo bairro. Ônibus demais, ladeiras, avenidas apertadas, o começo chega a ser desagradável. Mas é só passar a balsa para entrar em outro realidade, com homens de chapéu pescando, casas simples e cachorros para todos os lados. Aí tem os trajetos de terra, subidas com pedras que fazem a bike escorregar quando se pedala com força, lama, descidas escorregadias que precisam ser feitas com cuidado.

Na Imigrantes, a escolta da Polícia Rodoviária

Superado este trecho, saímos para a Imigrantes – não há ligação direta entre a Estrada de Manutenção, por onde é feita a descida em si, e a estradinha de terra que começa na Zona Sul de São Paulo. A Polícia Rodoviária organizou comboios de ciclistas, traçou um trajeto com idas e vindas para que ninguém cruzasse a pista e orientou o fluxo. Juntar comboios fez com que os mais apressados ficassem juntos com os mais lentos, criando algum risco.

No final, logo no acesso da Estrada de Manutenção, fomos recebidos pelo pessoal do Instituto CicloBR. Com canetas coloridas, marcaram números de registro na pele e organizaram fichas com nomes, telefones, contatos para o caso de emergência e informações médicas básicas. Em uma barraquinha, camisetas à venda e lanches. Organização feita por voluntários, muitos dos quais amigos, gente que acordou de madrugada para garantir que a descida da Serra acontecesse se repetisse. Quase 700 ciclistas fizeram o passeio graças a essas pessoas, gente que tem vontade de transformar e acabar com divisões e rasgos.

Serra do Mar
Pela Estrada de Manutenção passam poucos carros. O caminho é todo verde e úmido e, em muitos pontos, cheio de limo escorregadio. Mesmo com as recomendações de ir devagar e tomar cuidado para não escorregar  feitas com cuidado pelo Felipe Aragonez, secretário geral do CicloBR, tivemos um acidente.

Felipe Aragonez orienta os ciclistas no início da Estrada de Manutenção

Um dos meus amigos entrou mal em uma curva, apertou o freio no limo e desceu de lado, ralando o cotovelo. Curativos feitos, água oxigenada, gase, e prosseguimos devagar, vendo a paisagem, fotografando, conversando. Atravessamos bairros no meio da Serra do Mar, brincamos com crianças, encantadas com as buzinas, vimos peladas de futebol, pedalamos na lama.

Saímos em Cubatão, de cara com instalações da Petrobrás e todo um complexo industrial esfumaçando o verde da região. Paramos para um bom suco de laranja, onde o dono da padaria falou do sonho de transformar o local em um ponto de parada se a rota se tornar fixa, reabastecemos o combustível e prosseguimos até o mar.

"bicycling against oil wars" (pedalando contra guerras por petróleo)

Santos, pé na areia, mergulho na água, porção de peixe, cerveja. Voltamos de noite já, de ônibus. Cansados e absolutamente felizes, com a certeza de ter participado da construção de um caminho diferente, que tem a ver com o que a Márcia Prado começou a abrir em 2008.

Márcia vive!

Veja também: fotos e relato do JP, relato do Odir, fotos do Mário Filho, e vídeo da BikeJam.

Márcia vive!

 

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Os autores

Daniel Santini é jornalista, tem 31 anos e pedala uma bicicleta vermelha em São Paulo. Também colaboram no blog Gisele Brito e Thiago Benicchio.

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