O ritmo de Saramago

Foto: Fundação José Saramago (clique na imagem para acessar a página)

O escritor português José Saramago morreu em 18 de junho de 2010.  Crítico da velocidade, não gostava do twitter, reclamava sempre do ritmo da sociedade atual, da falta de tempo para reflexão e dos atropelos constantes.

Leia: “Até Amanhã”, no El País
Veja imagens do escritor

Com frases longas e bem elaboradas, questionava o que chamava de “tendência ao monossílabo” da nossa sociedade, criticava a pressa que desumaniza o mundo e o discurso da eficiência a todo custo.

Pressa de se chegar, a substituição do prazer em transitar pela cidade pela súbita e urgente necessidade de simplesmente chegar. Chegar, chegar, chegar. O impacto de tal obsessão é a transformação de bairros em avenidas, de espaços públicos em meros eixos de deslocamento, de ruas agradáveis e arborizadas em pistas de alta velocidade e asfalto por todos os lados.

E o mais irônico disso tudo é que, quando todos adotam essa lógica, quando para todos a única prioridade é chegar logo, o resultado é a lentidão coletiva. Quanto mais “eficiente” a estrutura viária de uma cidade, com avenidas de até 11 pistas (leia-se Marginal Tietê) e uma infinidade de viadutos, mais travada ela fica. São Paulo é exemplo da falência da angústia e do desespero em se chegar.

Trânsito em São Paulo antes de o jogo Brasil x Chile começar. Clique na imagem para ver como está a situação na cidade agora.

Direção

Saramago não só não dirigia, como relacionava seu fracasso como mecânico de automóveis ao fato de ter se interessado pelas letras. Nos seus “outros cadernos”, o blog que mantinha na internet, ele escreveu a respeito em agosto de 2009: “a junta do motor”.  O texto, como os demais do autor, faz pensar: “automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz”.

Nossa relação com o tempo é uma constante na obra de Saramago. A velocidade que impede reflexões mais profundas, que pede soluções imediatas sem nenhum aprofundamento, os textos mais curtos nos jornais, o absurdo número de links que abrimos todos os dias, de artigos que lemos sem nenhuma atenção, sem nenhum cuidado, a falta de interesse (ou falta de tempo) para os livros. Parece que dependemos mais de atualizações constantes do que de conhecer o passado ou o contexto do mundo em que vivemos.

No seu livro “Jangada de Pedra”, Saramago pondera:

Por bem fazer, mal haver, diziam os antigos, e tinham razão, pelo menos aproveitaram o seu tempo para julgar os factos então novos à luz dos então factos velhos, o nosso erro contemporâneo é a persistência duma atitude céptica em relação às lições da antiguidade.

As ruas não viraram avenidas por acaso. A cidade não é exageradamente asfaltada e as ruas não são inóspitas sem motivo.

Jangada de Pedra

Calma. Uma das muitas lições deixadas pelo escritor é viver a vida com a calma devida. Parar para aproveitar as ruas, as pessoas; pensar, refletir. Ler mais. O livro citado, aliás, tem um argumento genial. Trata-se da história do dia em que a Península Ibérica se separa da Europa e começa a vagar pelo Oceano Atlântico. Não é sobre mobilidade ou bicicleta, mas fica a dica.

O parágrafo pinçado acima é a introdução para uma reflexão sobre os impactos políticos de tal deslocamento. Saramago ironiza e se diverte fazendo especulações sobre as reações do Canadá e dos Estados Unidos se Portugal e Espanha, juntas, flutuassem em direção a América do Norte.

Sobre mobilidade, urbanismo e impactos físicos das ideias que temos, vale dar uma olhada no livro Cidade de Muros, adicionado hoje na sessão biblioteca. Clique aqui ou na imagem da capa do livro aí do lado para saber mais sobre o estudo da segregação espacial e da criação de fortificações conectadas por meio de avenidas inóspitas em uma cidade cada dia mais desumana. E apressada.

Veja também: concurso da CET de redação sobre o trânsito.

8 Respostas to “O ritmo de Saramago”


  1. 1 Eduardo Merheje Jr 28/06/2010 às 11:14 pm

    Reverter o histórico do por que fizemos cidades me parece impossível… Tipos de segregação urbana, o não-transporte, a menos valia do pedestre, merecem uma atenção especial Latina na Gestão das Cidades… Olhar as Metrópoles no Mundo sim… Lamentar e acomodar os Bairros tipo Alphaville de São Paulo, não… O fato de estar parado pode indicar performance de mobilidade… Copas do Mundo bem sucedidas foram feitas de forma interativa e no local do dia a dia de seus habitantes… Parques temáticos de Copas podem ser feitos em qualquer lugar… Dubai ex-deserto é exemplo… Cultura urbana só se constrói no tempo… Espaço, tempo, e velocidade… Física, Legado!

  2. 2 Patricia Rosa 29/06/2010 às 12:33 pm

    Ótimo post! Quanto tempo perdemos, querendo chegar mais rápido…

    • 3 Daniel Santini 06/07/2010 às 11:58 am

      Valeu, Patricia. Saudações.

      = )

      • 4 Eduardo Merheje Jr 06/07/2010 às 6:57 pm

        Velocidade tb é mobilidade, ou as horas perdidas e gastos sem turismo em uma Metrópole dividida, segregada, são saudáveis… É assim a vida da nossa Cidade, queiramos ou não… E não discordo em uma vírgula do que dizem do tema, mas estar parado tambem pode indicar velocidade no tempo que será gasto em mais lazer…

  3. 5 matiasmm 28/07/2010 às 12:11 pm

    muitos pensamentos.
    Mas um se repete e talvez por isso votei a esse texto. Sinto como quando nas corridas de aventuras brincávamos, potência sem controle não é nada. Ou seja, há grupos que passam outros correndo, e depois passavam correndo de novo, e de novo. Ou seja, correm, mas sem saber pra onde e depois têm que corrigir o caminho diversas vezes. É preciso planejar, botar a bússola no papel e caminhar. É mais importante saber a direção em que se vai do que correr.
    Nossa cidade é assim, têm que botar a bússola na mesa e ver a direção em que precisa ir, ai chegará, correr na direção errada não leva a nada.

  4. 6 Daniel Santini 17/08/2010 às 11:15 am

    Muito bom, Matias. Penso igual. Potência sem controle não é nada.


  1. 1 Formatos e valores « Outras Vias Trackback em 11/08/2010 às 1:05 pm
  2. 2 Sobre a vida (ou força, Tomás) « Outras Vias Trackback em 16/08/2010 às 4:47 pm

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Os autores

Daniel Santini é jornalista, tem 31 anos e pedala uma bicicleta vermelha em São Paulo. Também colaboram no blog Gisele Brito e Thiago Benicchio.

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