Sobre ordem e segurança

Rua de Nápoles, na Itália

Em abril de 2009, o pessoal do Transporte Humano, traduziu e reproduziu uma entrevista de Tom Vanderbilt ao site amazon.com (em português: parte I, parte II, parte III, e parte IV). Autor do livro “Traffic: Why We Drive the Way We Do” (em português: “Por que dirigimos assim?”), este escritor estadunidense aproveitou pesquisas recentes em psicologia, urbanismo e engenharia de tráfego para escrever e analisar o comportamento humano no trânsito.

Vale ler a entrevista inteira nos links acima, mas o que motivou a citação neste post é um ponto perturbador, no melhor sentido da palavra: aqui o autor questiona se o que parece seguro é realmente seguro e aponta para conclusões contra-intuitivas bem distantes do senso-comum.

Eu acho que parte da razão é que é fácil para nós confundirmos o que parece perigoso ou seguro no momento e que poderia ser, em um sentimento mais amplo, seguro ou perigoso. Temos uma visão de pára-brisa, ao dirigir, que às vezes nos cega para realidades maiores ou desvirtua a nossa percepção.

Tom Vanderbilt

Ordem no trânsito é sempre sinônimo de segurança? Avenidas bem sinalizadas, com faixas de pedestres definidas, semáforos ordenando o fluxo e placas organizando a divisão de espaço garantem sempre uma cidade mais segura para pedestres, motoristas, passageiros e ciclistas?

Pensei nisso por um bom tempo, especialmente ao viajar para cidades de países vizinhos como Peru e Bolívia em que o trânsito está longe de ser tão sistematizado como o de São Paulo. A desordem em tais localidades, porém, não é nada se comparada a do trânsito de Nápoles. São carros circulando para todos os lados, misturados com vespas, muitas dirigidas por adolescentes sem capacetes, e gente, muita gente. Neste vídeo que encontrei na rede, dá para ter uma ideia:

Passei quatro dias como pedestre na cidade, confortável em, mesmo com tanta confusão, poder atravessar a rua sem olhar direito para os lados. E um dia como motorista, em que a quantidade de variáveis me fez ficar bem mais atento, dirigir mais devagar e com mais cuidado.

É claro que, só com base em observação empírica não dá para tirar nenhuma conclusão sobre o assunto, mas a sensação é de que na desordem pode existir mais segurança na circulação do que em cidades organizadas priorizando exclusivamente o fluxo. O sistema de trânsito napolitano é menos eficiente, tudo demora mais, mas a cidade é mais humana. Nápoles é humana demais.

Se alguém souber de estudos comparativos com dados científicos e aprofundamento sobre questões relativas à ordem e segurança, favor indicar o link ou a estante. Por aqui, no Brasil, há exemplos de que nem sempre obras e sinalização resultam em mais segurança para as pessoas – apesar de normalmente resultarem em mais eficiência e velocidade.

Feriados e fim de ano
As estradas de São Paulo são um bom ponto de partida para qualquer análise. Tidas como as melhores do país, elas apresentam índices alarmantes e crescentes de acidentes e mortes. Há colisões gravíssimas mesmo entre as que têm pedágios caros e não param de se modernizar, com mais pistas, sinalização, asfalto sempre liso e sem buracos.

O número de mortes cresce ano a ano. Não é à toa que a Secretaria de Transportes do estado deixou de comparar os números absolutos de vítimas a cada feriado e passou a adotar um “índice de acidentes”, em que a quantidade de mortos e feridos é relativizada pela “extensão das rodovias, o volume diário médio de veículos (VDM) nas estradas e o período analisado” (leia a explicação oficial).

Como jornalista, já solicitei mais de uma vez os dados absolutos de anos anteriores, mas, tanto por parte da assessoria de imprensa da pasta, quanto por parte da Polícia Militar Rodoviária, há sempre a negativa e a explicação de que estes dados não são mais públicos e que a imprensa não deve(!) mais comparar dados absolutos.

Há casos em que o índice de acidentes indicava redução na média de mortos, apesar de mais gente ter morrido em um ano em relação aos anteriores.

A ordem pode permitir fluxos mais intensos e possibilitar velocidades maiores, mas será que está sempre relacionada à segurança?

6 Respostas to “Sobre ordem e segurança”


  1. 1 gufaleigeoblog 06/12/2010 às 3:10 pm

    Daniel
    Interessante essa sua relativizada no senso comum. Todo mundo diz mesmo que os italianos são uns malucos no trânsito. Eu tive a oportunidade uma vez de alugar um carro na Itália, em Roma. E eu já tinha aquela imagem que estava ferrado e já estava treinando a mão na buzina e uns “porca miséria” “maledeto” para distribuir por lá. Mas qual não foi minha surpresa ao notar que como paulistano eu tinha treinamento exemplar para me sair muito bem naquele trânsito que estava longe de ser agressivo como o nosso.
    saudações

  2. 2 João Lacerda 06/12/2010 às 6:51 pm

    Espaço Compartilhado meu caro Santini…

    Essa é a resposta inteligente para a sanha por mais sinalização…

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Espa%C3%A7o_compartilhado

    E quando penso em sinalização em prol da segurança… releio o “Alegoria dos Porcos”…

    http://blog.ta.org.br/2009/12/07/alegoria-dos-porcos/

    abs

  3. 3 Peters 07/12/2010 às 4:21 am

    Talvez você ache mais alguma coisa pesquisando no blog do Vanderbilt. Infelizmente é em inglês. http://www.howwedrive.com/

    A linha que ele toma é de que quanto melhores forem as condições de uma estrada, maior será a tendência para o motorista aumentar e velocidade e piores as conseqüências.

    Recentemente ele citou um post antigo, onde resume as conclusões de um trabalho de Eric Dumbaugh: “often the worst safety performance comes on the roads that are deemed “safe” by traffic engineers, while the best can come on tree-lined streets like the one above (which had no crashes and speeds below 30 mph during the five years he looked at it).” – os piores desempenhos em questão de segurança foram obtidos em vias que a engenharia de tráfego reputava como seguras, e os melhores em ruas com linhas de árvores ao lado. http://www.howwedrive.com/2008/10/21/getting-it-wrong-in-montogomery-county/
    A racionalidade dos técnicos nem sempre é reproduzida na sociedade.

    De qualquer forma, não deve haver uma relação simples entre ordem e segurança vial. Depende de vários fatores.

    O Núcleo de Psicologia do Trânsito da UFPR aplica uma dinâmica de grupo na qual uma organização burocrática resulta em maior número de ocorrências, as pessoas precisam se envolver de forma criativa e comprometida para “não matar ninguém” hipoteticamente.

    O blog do Hembrow também traz análises sobre a questão da segurança – http://hembrow.blogspot.com/2008/09/three-types-of-safety.html – com uma classificação que pode ser útil em análises viárias para ciclistas e pedestres. Cidades da Holanda, Dinamarca e outros países do continente europeu podem ser usadas como exemplos de ordenações que aumentaram a segurança para os vulneráveis, combinando técnicas de projeto “calmantes” de tráfego.

    O conceito de ruas completas que vem sendo tentado implantar nos EUA também parece algo do gênero, uma ordenação para todos os usuários (não somente para carros/motoristas).

    • 4 Daniel Santini 30/12/2010 às 1:00 pm

      Muitas vezes os comentários são melhores que os textos do blog em si. Obrigado pela colaboração ao debate e os links e estudos que citou, Peters. Fique à vontade para participar sempre que quiser. Saudações!

      Santini

  4. 5 Peters 07/12/2010 às 4:21 am

    Ah, já que ordem para nós se traduz na forma de leis, o “menos um Carro” acabou de publicar um artigo sobre porque nem sempre consegue obedecer à lei. http://menos1carro.blogs.sapo.pt/231672.html
    Então, se a ordem estabelecida não for satisfatória para algum segmento, tenderá a ser desconsiderada por esse segmento.

  5. 6 Henrique 15/12/2010 às 1:13 pm

    Concordo apenas em parte. É verdade que as tentativas infrutíferas dos engenheiros de tráfego, meus colegas, de impor modos de comportamento às pessoas – e de criticá-las quando elas não obedecem à “racionalidade do trânsito”, mas não reconhecer que os erros podem, e muitas vezes são, causados por eles mesmos, engenheiros – nos levam a buscar soluções mais realistas para a segurança, como é o caso da abordagem do espaço compartilhado.

    Aliás, uma visão muito interessante, e absolutamente iconoclasta, sobre os problemas de segurança, e das análises de risco em geral, é a do Prof. John Adams. Vejam o que ele escreve no seu blog (o texto é um capítulo de um livro que deverá ser publicado sobre o assunto em breve):

    “What does a transport safety regulator have in common with a shaman conducting a rain dance? They both have an inflated opinion of the effectiveness of their interventions in the functioning of the complex interactive systems they purport to influence or control. There is however a significant difference. The clouds are indifferent to the antics of the shaman and his followers. But people react to the edicts of a regulator and frequently not in the way the regulator intends”.
    (ver a continuação em:
    http://john-adams.co.uk/2010/12/02/managing-transport-risks-what-works/).
    Ele tem um livro publicado no Brasil, que eu recomendo fortemente: “Risco”, pela Editora SENAC, que tem um prefácio sugestivo: “Deus é brasileiro?”

    Essa discussão sobre a racionalidade do comportamento das pessoas no trânsito – como na vida em geral – é a meu ver a mais importante para quem trabalha com segurança do trânsito.

    Mas quanto ao vídeo sobre Nápoles, eu já não sou tão entusiasmado. Os poucos segundos que ele dura me deixaram estressado. Eu não suportaria viver num lugar tão barulhento. E o silêncio, para mim, é um dos bens mais preciosos da vida urbana.


Deixe um comentário




Os autores

Daniel Santini é jornalista, tem 31 anos e pedala uma bicicleta vermelha em São Paulo. Também colaboram no blog Gisele Brito e Thiago Benicchio.

Junte-se a 54 outros assinantes
dezembro 2010
S T Q Q S S D
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  

Dica de leitura

compartilhe ideias

Quando uma cidade congestiona é preciso pensar alternativas de trânsito; discutir, dividir caminhos e dialogar. Ocupe este espaço.

Creative Commons License